AGUSTINA BESSA LUIS
Nasceu em 1922 em Vila Meã, Amarante, Portugal.
Passou a sua infância e adolescência na sua região natal o que muito a marcou na sua vida e até na sua escrita.
Em 1948 escreveu o primeiro livro dos cerca de cinquenta até agora publicados.
Alguns deles foram adaptados ao cinema pelo cineasta Manoel de Oliveira.
Aqui fica uma crónica deliciosa e algumas capas das sua obras.
OS GATOS DE ROMA
A floresta está ainda despida, mas os galhos, que parecem espinhos a varar o céu, dão-nos uma impressão monumental. A floresta e os seus caminhos, procurados pelos casais ainda em tréguas entre o encontro e a despedida, guarda segredos profundos. Há, na alta borda do Lago Albano, um antigo convento que foi propriedade portuguesa. Depois perdeu-se por mérito de negociações que abandonámos, e agora, na escarpa verde, parece desconversar da nossa memória. Do lado oposto está Castel Gandolfo, vila pacata com varandas sobre o lago. Há na praça uma fonte de Bernini, simples como um riso dum morto e onde àgua canta sonoramente. O comércio é modesto, não há turistas; os japoneses limitam-se à Via Condoti, com o seu ar de vã filosofia combinado com as ofertas de Gucci e de Ferragamo.
Roma não é o que era. Prepara-se para o jubileu com persistência de cristão velho, mas falta-lhe a cordialidade que era um eufemismo do desejo. As multidões são anónimas e perversas na sua desordem aparente. Todos sabem o caminho certo para regressar a casa e nada os pode desviar: nem um café, nem um encontro. Nada os distrai do seu rumo fixo que são os subúrbios onde os carros, chegados à paliçadas dos jardins, parecem dormir exaustos.
Os gatos de Roma, que aparecem com o primeiro Sol da manhã e sobem para os tejadilhos dos automóveis para se embeberem de calor, estão ausentes. Quando os gatos de Roma não se notam, alguma coisa anda mal. Ou chove torrencialmente, ou a terra treme na mais profunda das suas entranhas.
Os gatos de Roma são tão célebres como os Borromini. Têm um ar escalavrado e hirsuto como os grifos das fontes, mas são, por natureza, educados e deixam que lhes cocem as orelhas, perguntando-nos alguma coisa numa língua que não entendemos. Não falam romano, mas um dialecto de Messina. Foram decerto os marinheiros de Messina, chamados para cobrir com velas o Coliseu, que os trouxeram. Por isso os gatos de Roma têm um ar, ainda hoje, transitório e um pouco desanimado. Mesmo quando são gatos de trattoria, mantêm-se distantes, ainda que não furtivos, e não se dignam a pedir nada nem a passear-se debaixo das mesas. Na Via Aurelia há gatos cujo pêlo parece uma plumagem. Quem sabe se eles deram origem à espécie mítica dos xofrangos, uma ave que tinha acordo com as feiticeiras? É possível.
As obras do milénio aborrecem-nos e eles deitam-se em formas de ferro de burnir, fechando os olhos de maneira dolorida. No entender deles, Roma não é o que era. De resto, eles nunca reconheceram a aliança com Roma nem a guerra púnica que daí resultou. Trocam entre eles sinais imperceptíveis, têm segredos que nunca hão-de ceder, são heróis e mendigos ao mesmo tempo. Gostam de leite de búfala e do toque dos sinos. Por isso não abandonam Roma, e por mais nada. Mas ouvi dizer que estão descontentes. O descontentamento duma pessoa e dum povo inteiro, em geral não leva a nada. Mas o de um gato, não se sabe até onde pode levar.
Texto de Agustina Bessa-Luís
(revista Factos, 8 Abril 1998)
"dentes de rato"
"as meninas", capa de Paula Rego
"o principio da incerteza"
"O Mistério da Légua da Póvoa"
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